A epidemia de ebola teve início nos primeiros meses de 2014 e foi
declarada Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional
(ESPII) em 8 de agosto. Sua disseminação é progressiva, com intensa
transmissão em regiões de escassos recursos sanitários, nos países do
Oeste da África (Serra Leoa, Libéria e Guiné) e com casos restritos ou
iniciais na Nigéria e no Senegal. Segundo o boletim da Organização
Mundial de Saúde (OMS) do dia 8 de setembro, o número total de casos
(entre confirmados, suspeitos e prováveis) hoje passa de quatro mil, dos
quais a metade foi registrada nos últimos 21 dias. Conta-se mais de
duas mil vítimas fatais, metade delas nas últimas 3 semanas.
Os esforços internacionais para conter a epidemia estão muito aquém
do necessário, apesar dos frequentes alertas da organização Médicos Sem
Fronteiras (MSF), que datam do início deste ano. A OMS faz recomendações
precisas aos governos nacionais, que são tão tecnicamente corretas
quanto impossíveis de realizar, simplesmente porque esbarram na ausência
de sistemas públicos de saúde estruturados. Aqueles que alegremente
defendem a privatização da saúde deveriam olhar para West Point, na
Libéria, e para a evidência de que, nas palavras de Bruno Canard, “o
mercado emerge quando o vírus sai de um país no qual o Ocidente gostaria
que ele ficasse” (Le Monde, 13/08/2014). Ou seja, despreze o SUS, pague
seu plano de saúde e o acione judicialmente quando ele se mostrar como é
(inócuo e perverso), mas lembre que sua estratégia alimentará um outro
mercado, secundário, o dos efeitos a longo prazo do colapso dos sistemas
públicos de saúde.
O Ministério da Saúde e outros especialistas avaliam, com razão, que é
baixo o risco da epidemia chegar ao Brasil. Não obstante, as ações de
prevenção, estruturação e organização do sistema de saúde para conter e
controlar a disseminação de tal surto devem ser postas em prática
enquanto não temos o primeiro caso. O Brasil tem um plano de contingência atualizado. Nos hospitais de referência para
acompanhamento e tratamento dos casos de ebola, está em curso a
aquisição de materiais de proteção individual, além da organização de
fluxos de atendimento, orientação e treinamento das equipes.
No dia de hoje, porém, fomos surpreendidos pelas declarações de agentes policiais e de autoridades do Acre,
que sugerem abertamente providências ilegais no Brasil, como a
quarentena, além de difundir equívocos intoleráveis como o de que o
clima do Norte é propenso à propagação da epidemia de ebola. Nunca é
demais repetir que o ebola se transmite pelos fluidos corporais de uma
pessoa sintomática. Ou seja, alguém que se encontra gravemente
debilitado, com dores abdominais, febre hemorrágica, diarreia e vômito (Veja nota técnica).
Dizer à população que nosso clima é propenso à propagação de um
terrível vírus constitui uma incitação direta à estigmatização dos
migrantes africanos, lançando-lhes a pecha de vetores da epidemia. Não é
de hoje que os migrantes são percebidos pelas autoridades do Acre como
um problema indesejado. Em lugar de tirar partido deste novo ciclo
migratório da história contemporânea, explorar sua grande riqueza humana
e fazer de nosso país uma referência internacional nesta matéria, o
caminho escolhido pelos governantes, e não apenas do Acre, foi
apresentar a dificuldade do Estado de cumprir suas obrigações mínimas
como uma grave crise humanitária. Sempre é bom lembrar que não somos uma
pequena ilha como Lampedusa (Itália): com menos de seis mil habitantes,
ela chegou a acolher, num só momento, mais de cinquenta mil migrantes e
refugiados. Na verdade, somos a sétima economia do mundo, com mais de
200 milhões de habitantes, recebendo poucos milhares de migrantes em
algumas cidades.
Ninguém pode prever se o Brasil terá um caso de ebola. Por enquanto,
nossos ebolas são a dengue (mais de quinhentos mil casos de janeiro a
agosto de 2014), a esquistossomose, a leptospirose, a malária, a
leishmaniose, a doença de Chagas e outras que não causam frisson e, ao
menos por enquanto, não despertaram a xenofobia. Algumas destas
enfermidades são consideradas “doenças negligenciadas”. Embora o nome
seja autoexplicativo, não é demais destacar que as epidemias escolhidas
para o que Ulrich Beck chama de “encenação do risco”, que também
poderíamos chamar de lucrativo histrionismo das empresas de comunicação,
merecem uma atenção vertiginosamente maior do que as “doenças de
pobre”, que vão ceifando numerosas vidas diariamente, embora ignoradas,
ou naturalizadas no noticiário nacional e local.
Em todo caso, vale a pena imaginar o que ocorrerá se o ebola chegar
ao Brasil. A situação, para desgosto de muitos, será bem distinta da dos
filmes de zumbi, e tantos outros nos quais Hollywood recorre aos mitos
ancestrais em torno das epidemias para afirmar a capacidade dos Estados
Unidos de salvar o mundo, e a necessidade absoluta de confiarmos neles.
Na prosaica realidade, uma pessoa apresentará os sintomas, que são
graves. Não se disfarça o ebola. Esta pessoa será atendida por um
profissional da saúde, e provavelmente ele é quem será exposto aos
fluidos corporais do enfermo – talvez também algum parente próximo.
Assim, os principais riscos objetivos desta agressiva doença atingem
sobretudo os profissionais de saúde.
Parêntese sobre os profissionais da saúde: no Brasil, onde tanto se
reivindica a importância da saúde e tanto se maltrata os trabalhadores
que fazem dela uma realidade, é raro encontrar alguém sabedor de que
jamais se matou, ou se deixou morrer, tantos trabalhadores da saúde, em
conflitos armados ou em crises sanitárias mal administradas mundo afora.
A hipocrisia angustiante em que vivemos não nos permite ver que, em
nossa sociedade, não é a vida, mas é a vida de alguns, e a saúde de
alguns, que importa. Banqueiros, empreiteiros, amantes do poder em
geral, é a saúde deles que pauta o mundo.
Voltando ao ebola, a informação e a responsabilidade devem prevalecer
sobre o medo. O Brasil tem todas as condições de tratar casos de ebola,
porque eles são facilmente identificáveis e passíveis de
acompanhamento. O ebola não é uma destas doenças acobertadas pela
invisibilidade, fruto da maior doença de nossa sociedade: alguns seres
humanos valem mais do que outros.
A lição que tiramos de algo novo, inesperado e ameaçador da segurança
sanitária e do bem-estar da população, já é bem conhecida e propagada
pelos estudiosos de saúde pública, em especial neste Brasil de
extraordinários sanitaristas.
Como combater o ebola e outras epidemias? A receita salta aos olhos.
De hora em hora, todo dia, é lutar por boas condições sanitárias e
econômicas, segurança alimentar, estabilidade política, combate
sistemático e eficaz à violência, sistemas educacional e de saúde bem
estruturados, respeito às liberdades individuais e direitos humanos
fortalecidos. Ou seja: só um mundo sem desigualdades é um mundo
preparado para uma grande ameaça.
Deisy Ventura é professora do Instituto de Relações Internacionais da USP
Leonel Campos é médico residente do Instituto de Infectologia Emílio Ribas
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