Nos últimos anos, um setor das forças progressistas se institucionalizou ainda mais enquanto a ultradireita tornou-se mobilizadora. Isso cria anomalias: ganhar eleições passa a ser “sabedoria política” – e projetos de país são implodidos pela burocracia e fisiologismos.
Recentemente,
alguns intelectuais sugerem a divisão da esquerda brasileira em dois blocos: a
esquerda institucional e a esquerda social. Esta é a proposição de Carlos
Vainer, da UFRJ.
A divisão
teria ocorrido mais nitidamente neste século XXI e, possivelmente, tem relação
com o advento do lulismo como fiel da estrutura e dinâmica de poder nesta
primeira quadra do século.
A esquerda
social seria aquela vinculada e orientada por movimentos sociais, sindicatos e
organismos ou fóruns da sociedade civil. Seus membros podem estar filiados a um
partido, mas privilegiam pautas e planos de ação de suas organizações sociais.
Por sua vez, seu foco é a luta social, a ampliação dos direitos coletivos e o aumento do poder político da sua base social. A disputa política que travam é mais aguda porque enfrentam diretamente a ordem social, embora raramente se posicionem como organizações revolucionárias.
Já a
esquerda institucional é aquela que privilegia o campo institucional e sua
pauta gravita ao redor de conquistas eleitorais.
Assim, se a
esquerda social se orienta por práticas de confronto e conquista de direitos, a
esquerda institucional se pauta pelo calendário eleitoral e acordos para
manutenção dos seus mandatos.
Na esquerda
social, as alianças são mais estratégicas, podendo ocorrer alguma aliança
tática como, por exemplo, acordos com parlamentares para emplacarem um projeto
de lei.
Já na
esquerda institucional, as alianças são sempre muito amplas, muitas vezes
descaracterizando até mesmo a identidade de esquerda justamente porque procuram
criar bases para a governabilidade de seus mandatos, evitando ao máximo
solavancos e surpresas.
Ocorre que,
nos últimos anos, a esquerda institucional se encontra mais e mais nas cordas.
O que a obriga a ceder mais. O cenário mais desfavorável ocorre porque agora a
maior oposição à suas pretensões não vêm de uma direita dócil, mas de uma
extrema direita mobilizadora e popular. As ruas, portanto, passaram a ser campo
de disputa, assim como corações e mentes da base popular.
Há,
portanto, uma esquerda que vai se desgarrando de sua identidade original e se
tornando cada vez mais moldada pelas amplas alianças e acordos que minam as
agendas e pautas originais.
Esta
discussão não é nova no campo da esquerda. Lênin, em seu artigo “Mais vale
pouco e bom”, de 2 de março de 1923 (ele faleceu em janeiro de 1924) já citava
os erros na estruturação do aparelho de Estado. Sem dar nome aos bois, sugere que
“no que se refere ao problema do aparelho estatal, devemos concluir da
experiência anterior que seria melhor ir mais devagar” e conclui “é preciso,
enfim, que tudo isso mude”.
Talvez, o
texto mais cirúrgico de crítica às mudanças de projeto e conceito que a máquina
soviética gerou é o livro de Charles Bettelheim, A Luta de Classes na URSS.
Enfim, há
farta literatura de esquerda a respeito desses atalhos da esquerda
institucionalizada que vai se afastando da sua origem até se perder num mar
revolto.
E é aqui que
gostaria de lançar uma reflexão: esta esquerda institucionalizada continua
esquerda? A pergunta não é meramente retórica. A questão é se o centro de
decisão desse segmento não seria nem mesmo o partido, mas a própria lógica da
burocracia estatal e a base de amplos acordos.
Se esta
hipótese tem sentido, estaríamos presenciando a formação de um segmento social
ou político autóctone, autorreferente, que não se vincula mais à base social
nenhuma, nem fora, nem à base partidária.
Ora, tal
orientação ensimesmada criaria uma série de laços de lealdade de caráter grupal
que se esforçaria para interditar divergências ou debate público de projetos e
teses.
Não sei se o
leitor desta provocação percebeu, mas minha sugestão é que tal esquerda
institucional estaria criando uma elite autolegitimada pela conquista
eleitoral, como provedora de uma sabedoria política.
Na tradição
da literatura de esquerda, teria certo paralelo com o conceito de “aristocracia
operária”, aquele segmento de operários altamente qualificados que recebem
salários acima da média geral da classe trabalhador e que gerava uma identidade
política e social muito peculiar, menos afeta à transformação política e
social. O termo foi criado por Engels em um artigo publicado nas revistas
Commonweal da Inglaterra e Die Neue Zeit da Alemanha no ano de 1885 e, décadas
depois, Lênin, o retomou para analisar a consequência política que seria a
separação deste segmento das grandes massas do proletariado.
Minha
impressão é que estamos vivenciando no país a cristalização deste segmento
social e político próprio que é a esquerda institucional que vai se
distanciando tanto da sua origem que nem mesmo se sabe se ainda é esquerda.
inf.via/outraspalavras
0 comments:
Postar um comentário