Por redação - 21 de agosto 2019
A tortura é
inerente ao encarceramento, mas muitas vezes não são reconhecidas como tortura
uma série de condições mantidas pelas estruturas físicas e administrativas das
unidades prisionais.
Nos últimos
20 anos, a Justiça Global tem denunciado aos organismos internacionais de
direitos humanos que a estrutura física das prisões tem sido fator fundamental
para a imposição de sofrimento físico e psíquico às pessoas privadas de
liberdade. Os prédios onde estão localizados estabelecimentos penais e
socioeducativos são degradados e insalubres com mofo muitas vezes acumulado
pela não incidência de luz solar, calor excessivo, falta de janelas e portas
que permitam a circulação de ar, infiltrações, dentre outros problemas
estruturais que têm sido denunciados como tratamento desumano, cruel e
degradante. Tudo isso acrescido da superlotação, reconhecida como um problema
crônico.
Os números
estarrecedores produzidos por órgãos estatais como o Departamento Penitenciário
Nacional (DEPEN), do Ministério da Justiça e Segurança Pública (1) já falariam
por si. Mas os dados da realidade documentada in loco pelo trabalho de
organizações da sociedade civil, órgãos estatais como as Defensorias Públicas,
mecanismos estaduais e nacional de prevenção e combate à tortura (2), demonstram
outros efeitos para além dos números: efeitos geradores de sofrimento físico e
psíquico, assim como a aquisição de doenças e/ou piora no quadro de doenças
preexistentes.
Algumas
práticas administrativas e de gestão das políticas públicas relacionadas à
execução penal e de medidas socioeducativas também são geradoras de sofrimento
e de tratamento degradante, cruel e/ou desumano, configurando tortura. Os
poucos recursos voltados à garantia de número suficiente de profissionais em
todas as áreas, por exemplo, impactam diretamente no acesso a direitos como
saúde e educação. Aponta-se aqui, o reduzidíssimo número de profissionais
responsáveis pelo chamado “tratamento penal” – assistentes sociais, psicólogos,
médicos, enfermeiros e dentistas – que compõem poucas equipes de trabalho e
tem, na maioria das vezes, contratos de trabalho precários e pouco
reconhecimento profissional.
A escassez
em relação ao número de profissionais, bem como a falta de equipamentos de
segurança, geram tipos diversos de sofrimento físico, psíquico e até morte,
como quando o socorro em situação de emergência não é oferecido em tempo. Este
foi o quadro que levou, por exemplo, à morte de Yasmin Pires Pessanha (21) e
Grazielle Gomes Antunes (27). No dia 14 de abril de 2018, as duas tiveram cerca
de 90% do corpo queimado em um incêndio no Presídio Nelson Hungria, localizado
no Complexo Prisional de Gericinó, em Bangu, Zona Oeste da cidade do Rio de
Janeiro. Ambas estavam em uma cela de isolamento que foi tomada pelo fogo (3).
Por outro
lado, como é possível identificar nas resoluções públicas da Corte
Interamericana de Direitos Humanos em relação aos casos de violações no sistema
prisional brasileiro, o número reduzido de profissionais expõe os presos a
riscos diversos, inclusive o de sofrer torturas impetradas não somente pelos
agentes, mas também por outras pessoas privadas de liberdade – como aconteceu
no estado de Goiás em situação que foi inclusive filmada e transmitida via
internet pelos próprios presos (4).
Algumas
práticas administrativas de controle disciplinar também têm se apresentado como
formas abusivas de imposição de sofrimento. A exemplo, em unidades prisionais
femininas às quais a Justiça Global tem acesso durante processos de inspeção,
as sanções disciplinares são utilizadas com muita frequência como instrumento
abusivo de controle, quando as mulheres presas são ameaçadas de perderem
benefícios como a visita periódica ao lar, ou de cumprirem mais tempo de
privação de liberdade. Isto porque, de acordo com a legislação brasileira,
sanções disciplinares podem implicar em impedimentos de progressão de regime.
Esta tem sido uma das reclamações mais frequentes entre as mulheres e homens no
sistema prisional em diversos estados brasileiros nos quais atuamos. A falta de
profissionais que tenham conhecimento técnico para acompanhar, registrar e
analisar o impacto das punições disciplinares no sofrimento psíquico de
mulheres privadas de liberdade é também um fator que contribui para o
ocultamento deste tipo de prática como tortura.
Como se
sabe, a maioria absoluta de pessoas privadas de liberdade no Brasil é composta
por pessoas negras. Isso implica a forma como as pessoas encarceradas têm sido
tratadas. A tortura no Brasil é uma prática institucionalizada que remonta à
colonização, à escravidão vigente entre os séculos XVI e XIX, que se reatualiza
no período ditatorial, e torna-se parte da cultura institucional do sistema
prisional e dos órgãos de segurança pública – isso sem contar os linchamentos
realizados nas ruas todos os dias1 por pessoas comuns, ao “fazerem justiça com
as próprias mãos”. Assim, importa considerar que a tortura integra uma
racionalidade colonial que ainda rege as relações sociais no país – existiriam
pessoas que “mereceriam” ser punidas de forma violenta, ou de forma que imponha
o máximo de dor possível, mesmo que isso seja deixar alguém em cela escura por
dias a fio.
Além do
sofrimento físico de socos, chutes, choques elétricos e modos de gerar dor sem,
contudo, tirar a vida, a tortura pode se materializar em uma série de práticas
como a restrição de luz solar, a restrição de ar adequado para se respirar, o
impedimento à liberdade depois de anos de encarceramento por excesso de sanções
disciplinares, pela negação de informações sobre filhos pequenos, dentre tantas
outras. Importante ainda, considerar, a dimensão temporal em relação à privação
de liberdade – já diriam os Racionais MC’s: o relógio da cadeia anda em câmera
lenta (6). Segundo nos relatam pessoas privadas de liberdade nas diversas
unidades prisionais e do socioeducativo, o tempo passa de forma lenta, e a
obrigatoriedade de “ficar sem ter o que fazer, trancada/o” é um dos grandes
fatores de sofrimento. Ao contrário do que se diz no senso comum, a ruptura com
atividades laborais, educativas, esportivas gera formas agudas de sofrimento.
Muitos dos
casos aqui relatados e das constatações que derivam de nosso trabalho de
monitoramento das violações de direitos humanos nos espaços de privação de
liberdade guardam um certo descompasso em relação à configuração formal de
tortura que se encontra nos entendimentos clássicos da jurisprudência. É, no
entanto, imprescindível reconhecer que a imposição proposital de sofrimento a
pessoas encarceradas como forma de punição é uma prática de tortura e precisa ser
abolida. Por outro lado, enfrentar a tortura como prática cotidiana nas
instituições é enfrentar outras mazelas históricas que nos assolam como nação,
como é o caso do racismo.
JustiçaGlobal
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