As heranças da inquisição, presentes
até hoje no Brasil, podem ser reavivadas
com a reforma do Código de Processo Penal.
A
Inquisição em Portugal e nas colônias pode ter acabado
oficialmente em 1821, mas, pelo menos no Brasil, suas chamas
continuam acesas, ainda que discretamente. Em breve, a Câmara dos
Deputados terá a chance de reavivá-las. Nada de perseguições,
torturas ou bruxaria: o único instrumento necessário é um projeto
de reforma do Código de Processo Penal, já aprovado pelo Senado.
Como em uma viagem no tempo, o projeto propõe a criação de um
modelo de juiz que surgiu nos primórdios da Inquisição espanhola e
nunca mais foi utilizado. Diferentemente do sistema atual, esse juiz
passa a poder apresentar provas a favor do réu.
O
chamado “juiz-defensor” era importante para neutralizar um
depoimento de acusação que tivesse o objetivo de prejudicar o réu.
Ele surgiu nas Instruções do primeiro inquisidor-geral espanhol,
Tomás de Torquemada, em 1484. Mas, e hoje? Qual seria o benefício
desse tipo de juiz para a Justiça brasileira? “Não sei qual o
lado bom, pois esse juiz é tendencioso, já nasce tendo que proteger
o réu. Mas se você for acusado, vai preferir um juiz que fique do
seu lado ou um juiz isento? Daí dá para se ter uma ideia de quem
propôs isso”, ironiza Mauro Fonseca Andrade, promotor de Justiça
do Rio Grande do Sul e autor de Inquisição espanhola e seu processo
criminal – As Instruções de Torquemada e Valdés (2006).
'Juiz-defensor'
criticado
O
projeto ainda não tem data para ser analisado na Câmara, mas já
vem sendo criticado por vários juristas e organizações. “O
sistema judiciário brasileiro não tem juízes suficientes; essa
ideia está fora da realidade. Além disso, o juiz tem que ser
imparcial; essa mudança vai contra os princípios da democracia
brasileira”, protesta Gabriel Wedy, presidente do Instituto dos
Advogados Brasileiros.
Talvez
a criação da figura do juiz-defensor nunca seja aprovada. De
qualquer modo, ela seria só mais lenha na fogueira, pois no Brasil
não faltam heranças da Inquisição – e a Justiça concentra boa
parte delas. Dois exemplos positivos são a concessão de defensor
público a quem não tem dinheiro para pagar um advogado e a figura
do Ministério Público, criada na esfera inquisitorial, mas ainda no
fim da Idade Média. Naquela época, a Igreja e a Coroa tinham uma
espécie de funcionário chamado “fiscal”, encarregado de
apresentar acusações à Inquisição. “Isso acontecia justamente
porque os particulares não tinham intenção ou então tinham medo
de acusar quem cometia algum crime ou praticava heresia”, explica o
promotor Andrade. Ainda hoje, na Espanha, o nome do órgão
equivalente ao nosso Ministério Público é Ministerio Fiscal.
O
segredo de processo é outra herança desse período. Na Idade Média,
ele era uma forma de os inquisidores manterem maior controle sobre as
ações. Antes disso, os julgamentos eram públicos e chegavam a ter
a presença de até seis mil pessoas. Essa participação permitia
uma espécie de fiscalização popular. Mesmo com o fim dessa
plateia, os acusados não ficaram totalmente desamparados: surgiu na
mesma época o recurso em benefício do réu. Em alguns países,
passou a ser possível recorrer das decisões impostas pelo tribunal.
A francesa Joana D’Arc (1412-1431), por exemplo, só pôde apelar
ao papa por causa deste recurso. Ele não foi tão eficaz quanto o
esperado, mas retardou sua morte.
Inquisição
X Constituição
Esses
e outros resquícios da Inquisição se fixaram no processo penal de
forma que nem o discurso liberal no Império nem a influência
americana na Constituição republicana de 1891 conseguiram
eliminá-los. “Isso se intensificou com o Código de Processo Penal
de 1941, elaborado no clima do Estado Novo e vigente até hoje. O
código se baseia na hipertrofia do poder e na presunção de culpa
do acusado. Ele se choca com a Constituição de 1988, cujos
pressupostos se encaminham para um modelo acusatório que privilegia
três entes separados: a promotoria, a defesa e o juiz, em lugar da
concentração, típica do modelo inquisitorial”, afirma Arno
Wehling, presidente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
(IHGB) e autor de Direito e Justiça no Brasil Colonial – o
Tribunal da Relação do Rio de Janeiro (1751-1808) (2004), com Maria
José Wehling.
Por
mais óbvias que sejam para especialistas em história jurídica,
essas heranças inquisitoriais dificilmente são percebidas pela
população. Uma das maneiras mais simples de notarmos os resquícios
do Santo Ofício nos dias de hoje talvez seja por meio de expressões
populares, como “a carapuça serviu”. Há quem garanta que a
origem está no ritual que obrigava os réus da Inquisição a
colocar um gorro cônico na cabeça, assumindo a culpa. E quem nunca
“ficou a ver navios”? Esta expressão teria surgido em Portugal,
quando os judeus se preparavam para deixar o reino na data marcada
por D. Manuel, ainda no século XV. Tudo não passava de uma farsa
montada pelo rei, que não queria que eles partissem. Resultado:
todos foram convertidos à força ao catolicismo, e os navios que os
levariam embora nunca apareceram.
Ditados
com origem inquisitória
Um
exemplo que mostra bem o clima de perseguição da época é o ditado
“mesa de mineiro tem gaveta para esconder a comida quando chega
visita”. Facilmente relacionado à sovinice, pode ter uma origem
bem diferente, já que os cristãos-novos eram obrigados a esconder
comidas tipicamente judaicas para não serem identificados por
possíveis delatores. “Quando chegava uma visita, que muitas vezes
era um cristão-velho, dizem que eles escondiam a comida kasher nas
gavetas e tiravam, por exemplo, carne de porco, que é proibida aos
judeus. Isto é o que se conta, mas não se tem como comprovar”,
diz Tânia Kaufman, presidente do Arquivo Histórico Judaico de
Pernambuco.
Outro exemplo, mais conhecido, já deixou amedrontadas crianças de
todas as religiões. Muita gente costuma dizer que quando se aponta
para as estrelas, nascem verrugas nos dedos. Claramente, isso não
passa de uma lenda, provavelmente criada por causa da tradicional
cerimônia do shabat, que começa na sexta-feira à tarde, quando a
primeira estrela aparece no céu. A história era uma maneira de
evitar que as crianças de origem judaica – habituadas a venerar o
astro que dava início ao ritual – apontassem para a estrela e se
denunciassem à Inquisição.
A
lista de mitos e expressões conhecidos até hoje é longa, e inclui
itens também pejorativos, como a palavra “judiar”. Usada na
maioria das vezes por pessoas que nem fazem ideia de sua origem, ela
aparece no Dicionário Houaiss como “ato de judiar, de fazer alguém
alvo de escárnio ou de maus-tratos; judiaria”. Exatamente o que
acontecia com os cristãos-novos de origem judaica, os mais
perseguidos pela Inquisição portuguesa.
Outras
palavras, embora já existissem antes, também adquiriram, durante a
Inquisição, um significado relacionado à perseguição aos
cristãos-novos.Em dicionários da época, a palavra “infecto”,
por exemplo, era sinônimo de quem tinha sangue judeu ou mouro, entre
outros grupos nada bem-vindos. “É difícil estudar o racismo de
hoje sem entender que é uma questão de mentalidade a longo prazo.
Por mais que sejam manifestações distintas, a origem de tudo está
ali, nesse pensamento racista de fundamentação teológica”,
explica Maria Luiza Tucci Carneiro, coordenadora do Laboratório de
Estudos sobre Etnicidade, Racismo e Discriminação (Leer) da USP.
Apesar
de ainda restarem hoje expressões negativas, piadas sobre judeus e
algumas manifestações de racismo isoladas, não se pode dizer que o
povo brasileiro é antissemita. “Há algumas pessoas que têm
antipatia pelos judeus, mas não sabem o porquê. Até a Igreja, que
manteve a antipatia por um tempo, já pediu perdão pela Inquisição”,
lembra Anita Novinsky, presidente e fundadora do Laboratório de
Estudos sobre a Intolerância da USP. Segundo ela, apesar de ter sido
uma “instituição de horror”, a ação inquisitorial teve outros
desdobramentos: “Ela fez com que vários cérebros ilustres
fugissem para o Brasil. Sem contar os primeiros plantadores de
açúcar, os primeiros mineradores. Esse foi seu maior legado”.
Entre
tantas heranças, a lista parece infinita. E atinge praticamente
todos os campos da cultura popular, incluindo a rejeição de muitos
nordestinos à carne de porco – denunciando aí um judaísmo
clandestino – e até a tradicional festa de São João. Pois é,
quem pula as fogueiras juninas nem imagina que elas estão associadas
às chamas da Inquisição. Mas ambas foram tentativas da Igreja de
desfazer a imagem negativa das fogueiras acesas nas festas pagãs
[Ver RHBN nº45]. Consideradas desde então “fogos eclesiásticos”,
as fogueiras da Inquisição nunca chegaram a arder aqui no Brasil.
No entanto, sua versão mais inocente continua a fazer muito sucesso
no país e está, junto com as demais heranças na cultura e na
Justiça, mantendo as chamas da Inquisição acesas, discretamente,
por mais de 200 anos.
Ronaldo Vainfas
Professor da Universidade
federal fluminense e autor
de trópico dos pecados
(nova fronteira 2010)
e confissões da Bahia.
( companhia das letras 2005)
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