POR JOSÉ RIBAMAR BESSA FREIRE
Na Argentina, elas foram reprimidas
por baionetas quando indagaram, em 1977, pelos filhos presos. Os
generais golpistas debocharam: "son las locas de Plaza de Mayo".
Obstinadas, não desistiram, continuaram ocupando a Praça de Maio,
desfilando o seu protesto semanal diante da Casa Rosada e da catedral
até que, finamente, reconhecidas pela sociedade, contribuíram para o fim
da ditadura e a prisão dos torturadores.
No Brasil, vários movimentos nos fizeram ouvir a voz de quem foi
silenciado. No entanto, como ninguém entende línguas indígenas, nem se
interessa por aprendê-las, não se escuta o clamor dos índios, seja de
mães indígenas por seus filhos ou de índios por seus pais desaparecidos.
Desta forma, os índios, sempre invisíveis na historia do Brasil,
ficaram de fora das narrativas e não figuram nas estatísticas dos
desaparecidos políticos. Na floresta, não há praças de maio.
Mas agora isso começa a mudar. Relatório do Comitê Estadual da
Verdade do Amazonas, que será em breve publicado pela Editora Curt
Nimuendajú, de Campinas (SP), começou a mapear os estragos, comprovando
que na Amazônia, mais do que militantes de esquerda, a ditadura eliminou
índios, entre outros, Cinta-Larga e Surui (RO/MT), Krenhakarore na
rodovia Cuiabá-Santarém, Kanê ou Beiços-de-Pau do Rio Arinos (MT),
Avá-Canoeiro (GO), Parakanã e Arara (PA), Kaxinawa e Madiha (AC), Juma,
Yanomami e Waimiri-Atroari (AM/RR).
O foco do primeiro relatório, de 92 páginas, já encaminhado à
Comissão Nacional da Verdade (CNV), incide sobre os Kiña, denominados
também como Waimiri-Atroari, cujos desaparecidos são conhecidos hoje por
seus nomes, graças a um trabalho cuidadoso que ouviu índios em suas
línguas, consultou pesquisadores e indigenistas, fuçou arquivos e
examinou documentos, incluindo desenhos que mostram índios metralhados
por homens armados com revólver, fuzil, rifles, granadas e cartucheira,
jogando bombas sobre malocas incendiadas.
Os desaparecidos
De noite, nas malocas, os sobreviventes narram a história da
violência sofrida, que começou a ser escrita e ilustrada por crianças
alfabetizadas na língua Kiña pelos professores Egydio e Doroti Schwade
com o método Paulo Freire. O casal morou com quatro filhos pequenos na
aldeia Yawará, sul de Roraima, em 1985 e 1986, antes de ser expulso pelo
então presidente da Funai, Romero Jucá, lacaio subserviente das
empresas mineradoras.
Durante esse período, Egydio registrou, com ajuda de Doroti, as
narrativas contadas às crianças por adultos que testemunharam os fatos.
Os primeiros textos escritos por recém-alfabetizados, ilustrados por
desenhos, revelaram "o método e as armas usadas para dizimá-los: aviões,
helicópteros, bombas, metralhadoras, fios elétricos e estranhas
doenças. Comunidades inteiras desapareceram depois que helicópteros com
soldados sobrevoaram ou pousaram em suas aldeias" – diz o relatório.
Com a abertura da rodovia BR-174 e a entrada das empresas
mineradoras, muitas aldeias foram varridas do mapa. "Pais, mães e filhos
mortos, aldeias destruídas pelo fogo e por bombas. Gente resistindo e
correndo pelos varadouros à procura de refúgio em aldeia amiga. A
floresta rasgada e os rios ocupados por gente agressiva e inimiga. Esta
foi a geografia política e social vivenciada pelo povo Kiña desde o
início da construção da BR-174, em 1967, até sua inauguração em 1977" –
segundo o relatório.
Alguns sobreviventes refugiados na aldeia Yawará conviveram durante
dois anos com Egydio e Doroti. Lá, todas as pessoas acima de dez anos
eram órfãs, exceto duas irmãs, cuja mãe ainda vivia. O relatório
transcreve a descrição feita pelo índio Panaxi:
"Civilizado matou com bomba" – escreve Panaxi ao lado do desenho,
identificando os mortos com seus nomes: Sere, Podanî, Mani, Priwixi,
Akamamî, Txire, Tarpiya. A eles se somaram outros de uma lista feita por
Yaba: Mawé, Xiwya, Mayede – marido de Wada, Eriwixi, Waiba, Samyamî –
mãe de Xeree, Pikibda, a pequena Pitxenme, Maderê, Wairá – mulher de
Amiko, Pautxi – marido de Woxkî, Arpaxi – marido de Sidé, Wepînî – filho
de Elsa, Kixii e seu marido Maiká, Paruwá e sua filha Ida, Waheri, Suá –
pai de Warkaxi, sua esposa e um filho, Kwida – pai de Comprido, Tarakña
e tantos outros.
Quem matou
A lista é longa, os mortos têm nomes, mas às vezes são identificados
pelo laço de parentesco: “a filha de Sabe que mora no Mrebsna Mudî, dois
tios de Mário Paruwé, o pai de Wome, uma filha de Antônio”, etc. O
relatório se refere ao "desaparecimento de mais de 2.000 Waimiri-Atroari
em apenas dez anos". Na área onde se localiza hoje a Mineradora Taboca
(Paranapanema) desapareceram pelo menos nove aldeias aerofotografadas
pelo padre Calleri, em 1968, em sobrevoos a serviço da FUNAI. Os alunos
da aldeia Yawará desenharam casas e escreveram ao lado frases como:
- Apapa takweme apapeme batkwapa kamña nohmepa [o meu pai foi atirado
com espingarda por civilizado e morreu] – escreveu Pikida, ao lado do
desenho que ilustra o fato.
- Taboka ikame Tikiriya yitohpa. Apiyamyake, apiyemiyekî? [Taboca chegou, Tikiria sumiu, por que? Por que?]
A resposta pode ser encontrada no ofício 042-E2-CONF. do Comando
Militar da Amazônia, de 21/11/1974, assinado pelo General Gentil
Nogueira, que recomendava o uso da violência armada contra os índios,
segundo o relatório encaminhado à Comissão Nacional da Verdade.
Um mês e meio depois, o sertanista Sebastião Amâncio da Costa,
nomeado chefe de Frente de Atração Waimiri-Atroari (FAWA), em entrevista
ao jornal O Globo (06/01/1975), assumiu de público as determinações do
general Gentil, declarando que faria “uma demonstração de força dos
civilizados que incluiria a utilização de dinamite, granadas, bombas de
gás lacrimogêneo e rajadas de metralhadoras e o confinamento dos chefes
índios em outras regiões do País”.
O resultado de toda essa lambança é descrito por Womé Atroari, em
entrevista à TV Brasil, relatando um ataque aéreo a uma aldeia e outros
fatos que presenciou:
- Foi assim tipo bomba, lá na aldeia. O índio que estava na aldeia
não escapou ninguém. Ele veio no avião e de repente esquentou tudinho,
aí morreu muita gente. Foi muita maldade na construção da BR-174. Aí
veio muita gente e pessoal armado, assim, pessoal do Exército, isso eu
vi. Eu sei que me lembro bem assim, tinha um avião assim um pouco de
folha, assim, desenho de folha, assim, um pouco vermelho por baixo, só
isso. Passou isso aí, morria rapidinho pessoa. Desse aí que nós via.
Os tratores que abriam a estrada eram vistos pelos índios como
tanques de guerra. “Muitas vezes os tratores amanheciam amarrados com
cipós.Essa era uma maneira clara de dizer que não queriam que as obras
continuassem. Como essa resistência ficou muito forte, o Departamento
Estadual de Estradas de Rodagem do Amazonas-DER-AM, inicialmente
responsável pela construção, começou a usar armas de fogo contra os
indígenas”.
Sacopã e Parasar
O relatório informa que “as festas que reuniam periodicamente os
Waimiri-Atroari foram aproveitadas pelo Parasar para o aniquilamento dos
índios”. Conta detalhes. Registra ainda o desaparecimento de índios que
se aproximaram, em agosto de 1985, do canteiro de obras da hidrelétrica
do Pitinga, então em construção:
“É muito provável que tenham sido mortos pela Sacopã, uma empresa de
jagunços, comandada por dois ex-oficiais do Exército e um da ativa,
subordinado ao Comando Militar da Amazônia, empresa muito bem equipada,
que oferecia na época serviços de “limpeza” na floresta à Paranapanema
no entorno de seus projetos minerais. Os responsáveis pela empresa foram
autorizados pelo Comando Militar da Amazônia a manter ao seu serviço
400 homens equipados com cartucheiras 20 milímetros, rifle 38,
revolveres de variado calibre e cães amestrados”.
Os autores do relatório dão nomes aos bois, esclarecendo que quem
comandava a Sacopã no trabalho de segurança da Mineração
Taboca/Paranapanema e no controle de todo acesso à terra indígena eram
dois militares da reserva: o tenente Tadeu Abraão Fernandes e o coronel
reformado Antônio Fernandes, além de um coronel da ativa, João Batista
de Toledo Camargo, então chefe de polícia do Comando Militar da
Amazônia.
É Rondon de cabeça pra baixo: "Matar ainda que não seja preciso;
morrer nunca", num processo iniciado com o colonizador e ainda não
concluído. Na Amazônia, o cônego Manoel Teixeira, irmão do governador
Pedro Teixeira, em carta ao rei de Portugal, em 5 de janeiro de 1654,
escrita no leito da morte, declara que “no espaço de trinta e dois anos,
são extintos a trabalho e a ferro, segundo a conta dos que ouviram,
mais de dois milhões de índios de mais de quatrocentas aldeias”.
O relatório é um bom começo, porque evidencia que os índios precisam
de uma Comissão da Verdade não apenas para os 21 anos de ditadura
militar, mas para os 514 anos de História em que crimes foram e
continuam sendo cometidos contra eles. Assim, podem surgir praças de
maio dentro das malocas, cobrando mudanças radicais na política
indigenista do país.
Fonte:Blog da Amazônia
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