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Nem só de acomodações precárias, pouca comida, falta de trabalho e
indisposição com a população local são feitos os desafios da política
imigratória brasileira de recebimento dos haitianos. Em Brasiléia, no
sul do Acre, principal ponto de chegada dos estrangeiros, uma nova face
da situação tem se revelado. Casos de crianças e adolescentes sem os
responsáveis legais são cada vez mais frequentes. Só neste ano, 60
meninos e meninas foram atendidos pelo conselho tutelar da cidade —
quase o triplo dos 22 notificados em 2012. Um deles, sem qualquer
parente no país, fugiu do abrigo onde estava. Outro, que também entrou
sozinho clandestinamente no Brasil, aguarda há seis meses um desfecho
sobre sua permanência.
Desacompanhados, tornam-se mais vulneráveis a violações, além de não terem quem responda por eles.
Os dados levantados pelo conselho tutelar de Brasiléia, a pedido do
Correio, mostram que a maior parte das 82 crianças e adolescentes
estrangeiros identificados sem acompanhante na cidade é formada por
homens. Mais de 70% têm entre 12 e 17 anos. Do total, 78 são do Haiti,
três do Suriname e um do Equador. Em 73% dos casos, um primo ou uma
prima assumiu a guarda provisória do menor. “Muitas vezes, não
conseguimos nem verificar se esse parentesco existe porque os haitianos
não costumam usar o sobrenome da mãe. Mas encaminhamos os casos para o
Judiciário, que tem atuado com o Ministério Público para resolver os
problemas”, afirma Sebastião Ferreira Moreira, conselheiro tutelar em
Brasiléia.
Moreira explica que os casos chegam ao conselho tutelar, na maioria das
vezes, encaminhados pela Polícia Federal ou por funcionários do albergue
nos quais estão os haitianos que chegam a Brasiléia. “Isso acontece
muito com os que querem viajar para Goiás, Rio de Janeiro ou São Paulo.
Aí, percebem que não podem seguir sozinhos, ou mesmo acompanhados por
alguém que não seja o legítimo responsável”, diz o conselheiro. A
situação se complica, conta Moreira, quando é preciso utilizar o abrigo
para crianças e adolescentes do município. “É uma casa improvisada,
muito precária, que não atende nem nossa demanda normal, imagine com os
estrangeiros.”
Conflito
Promotora de Justiça da Comarca de Brasiléia, Diana Soraia Tabalipa
Pimentel afirma que atua nos casos de definição de guarda para “ajudar”.
“Não é minha atribuição. Se fossem crianças brasileiras, nascidas aqui,
seria de minha responsabilidade. Mas (a recepção dos haitianos) foi um
comprometimento do governo federal. Pergunte a eles o que você quer
saber”, disse a promotora, ao mencionar que o Ministério Público Federal
(MPF) só foi a Brasiléia uma única vez.
Pedro Kenne, procurador da República no Acre, tem outro entendimento.
Ele destaca a existência de uma lacuna na lei brasileira sobre o
tratamento dispensando a menores de idade estrangeiros nessa situação,
mas argumenta que o Estatuto da Criança e do Adolescente “não distingue a
nacionalidade” dos seus destinatários.
Kenne explicou ainda que o Ministério Público Estadual tem mecanismos
para o que chama de “declínio” de atribuição ao MPF, “o que, até o
momento, não fez”. Para ele, no contexto de ausência de regulamentação
clara, a atuação da promotoria do estado, com sede em Brasiléia, é mais
adequada, até por “racionalidade administrativa”.
No entanto, o procurador afirmou que o MPF tem atuado na questão dos
haitianos, sobre as condições insalubres a que têm sido submetidos, e em
relação ao garoto que está em um abrigo sem qualquer responsável no
país. Segundo Kenne, crianças e adolescentes são mais vulneráveis, pela
própria natureza, do que adultos. Por isso, precisam ter os direitos
básicos garantidos.
O malabarista que fugiu
Qualquer objeto voava nas mãos de Felipe*. O equatoriano, mais um
adolescente que cruzou sozinho as fronteiras brasileiras na onda
migratória rumo ao Brasil, era malabarista. O sonho: trabalhar em um
circo no Rio de Janeiro. Impedido de seguir viagem para o Sudeste do
país, por ser menor de idade desacompanhado, foi para o abrigo de
Brasiléia. Não passou mais do que duas semanas no local. Fugiu, no mês
passado, sem deixar qualquer notícia. “Tudo que ele pegava aqui no
abrigo era para fazer malabarismo. Acho que deve ter ido mesmo atrás de
algum circo”, conta Analda do Rego Albuquerque, psicóloga da casa
reservada a crianças e adolescentes que precisam ser retirados das
famílias por motivo de violência. Agora, o espaço tem recebido também os
estrangeirosRenata Mariz / Correio Braziliense
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